terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Primeira diretora transexual de escola pública no Rio joga luz sobre diversidade em sala de aula

juliadutraJulia Dutra proíbe short curto e estimula debates sobre preconceito no Colégio Estadual Max Fleiuss, no bairro da Pavuna
"Quando voltei para ensino médio, tive medo. Mas a Julia serviu como um escudo e me ajudou", diz aluno gay
Por: LAURO NETO
RIO — Na porta do Colégio Estadual Max Fleiuss, na Pavuna, o vigia noturno proíbe a entrada de uma adolescente de shortinho. Orientação da diretora da escola, Julia Dutra. Ela é a primeira transexual a exercer um cargo de direção na rede do estado. Desde que assumiu sua nova identidade, há um ano, Julia impõe respeito para ser respeitada. Num país onde o preconceito ainda aparece, muitas vezes, sob a justificativa de que quem não é heterossexual é promíscuo, ela educa no sentido contrário:
— Criamos uma cultura de usar roupas adequadas. Nada indecente para não exacerbar a sexualidade dos alunos — explica a diretora, que comanda dez turmas de ensino médio à noite.
Julia diz contar com o apoio da maioria dos estudantes e professores. Segundo ela, mesmo a equipe da direção, composta por 90% de evangélicos, não a discrimina. No entanto, duas funcionárias não quiseram falar sobre o assunto. A única que se dispôs foi a secretária Maria Helena Feliciano. Sem parentesco com o polêmico deputado federal de mesmo sobrenome, ela frequenta a Assembleia de Deus, mas não vê conflito entre sua escolha religiosa e a orientação sexual de Julia.

— Não vai contra minha religião e não sou preconceituosa. Todos somos iguais perante Deus e a lei — pondera Maria Helena. — No início, causou um certo impacto a mudança, mas as virtudes da Julia superam isso. Ele é uma pessoa muito positiva, que sabe dominar as situações.
A secretária não é a única a confundir os gêneros ao se referir a Julia. Professores e alunos ainda usam "ele" e "Julio", nome original da diretora, para, na sequência, se corrigirem. Além de ser recente a transformação visível, Julia espera a alteração de seu nome nos documentos, o que deve acontecer este mês. Já a cirurgia de troca de sexo, aguardada há dois anos, deve ser realizada no Hospital Pedro Ernesto ainda em 2014.
Formada em Educação Artística pela UFRJ, ela também dava aulas de artes cênicas na rede estadual antes de assumir a direção da Max Fleuiss este ano, indicada pela ex-diretora, com concordância da comunidade escolar. Há oito anos no colégio, ela diz ter conquistado o respeito através de seu trabalho. Porém, admite que há um preconceito velado, mas sutil. Para ilustrar, conta a história do tio de uma aluna cadeirante, que lhe faltou com sutileza.
— Ele veio buscar a sobrinha num dia em que a aula acabou mais cedo, reclamando que já era uma humilhação ela estar numa cadeira de rodas. Ele se recusou a conversar comigo, pois não respeitava um diretor que se vestia de mulher.
Desde pequena, Julia usava as roupas da mãe. Quando adolescente, teve vontade de tornar hormônios, mas se reprimiu por causa do pai. Ela reconhece a importância da figura paterna em sua formação profissional, apesar de não ter recebido o mesmo apoio ao decidir assumir a identidade feminina. A transformação aconteceu depois da morte dele:
— Tenho a coisa da transexualidade desde criança. Mas meu pai era bem rígido e machista. Não permitia que eu me libertasse. Camuflei isso com medo de não ser aceita. Há uns quatro anos, venho me desconstruindo e reconstruindo gradualmente. Não sofro preconceito na escola nem na minha família. Sempre foi o desejo da minha mãe ter uma filha. Ela é mais aberta — diz Julia, que tem dois irmãos.
Acostumada a lidar com adolescentes e crianças (ela também dava aula de artes na rede municipal), Julia trabalha a diversidade em debates sobre o preconceito, na idade em que ele é mais latente. Sua postura serve de alento a jovens como João Ricardo Santos, de 19 anos. Homossexual assumido, ele é aluno do 2º ano do Max Fleuiss e diz que hoje se sente mais respeitado.
Mas nem sempre foi assim. Quando estudou do 5º ao 8º ano do ensino fundamental no mesmo espaço físico, onde funciona uma escola municipal, sofria constantemente com agressões morais e até físicas:
— Jogavam desde piadinhas até pedras em mim. Dei graças a Deus quando saí. Ano passado, quando voltei para o ensino médio noturno, tive medo. Mas a Julia serviu como um escudo e me ajudou. Se falam alguma coisa desrespeitosa para mim, eu conto para ela.
Nos colégios particulares, o tema ainda parece ser tratado como um tabu. O GLOBO tentou ouvir algumas escolas, mas o único que se dispôs a contar um caso de preconceito contra homossexuais foi Rui Alves, diretor da rede pH. Ele diz que, há dois anos, um aluno do ensino médio, assumidamente gay, estava sendo discriminado por três colegas evangélicos. A questão foi levada para as aulas de Vida e Atualidades, em que psicólogos trabalham valores morais, e resolvida com um bom desfecho.
— Os alunos faziam piadinhas ofensivas com ele por uma questão religiosa. Na Aula de Atualidades, o problema foi debatido, os colegas escreveram uma carta pedindo desculpas a ele, e a turma passou a ter um relacionamento melhor — lembra Rui. — Com essa última novela das 21h, que abordou a homossexualidade, resgatamos o tema para explorar os valores de que todos têm que ser tratados de forma igual.
Vice-presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Município do Rio de Janeiro (Sinepe), Victor Notrica afirma que não lembra de nenhum caso grave de preconceito contra homossexuais em escolas particulares:
— Na forma de bullying, talvez. Aí entra como aquele aluno que usa óculos, que é gordinho ou baixinho. Não tenho conhecimento de uma situação grave em relação a isso em 58 anos de sala de aula. A escola particular tem psicólogo e orientador educacional que observam isso e dão o tratamento necessário. É tratado de uma forma a aceitar essa postura de alunos ou de professores, desde que não comprometa os objetivos básicos da escola — explica Notrica.
Transexual e diretora da Escola Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais (PR), Laysa Machado diz que o preconceito é maior na rede privada de ensino. Ela foi demitida de um colégio particular em 1999, quando se assumiu e usou um vestido. Depois, só voltou a conseguir emprego, por concurso público, na rede estadual:
— Tenho certeza de que a escola privada é mais excludente. Trabalhei por mais de três anos em uma que, além de privada era religiosa, e presenciei episódios de preconceito. Por mais que mandasse currículo, nunca fui chamada para uma entrevista. Raramente aceitam transexuais. Você conhece alguma que aceita? Eu não — diz Laysa, que escreveu a peça "Morada transitória" para trabalhar o tema com os alunos.
O texto teatral virou um documentário homônimo que será lançado em maio. (Veja o trailer aqui)
Da teoria à prática na aceitação do diferente
Coordenadora do bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Márcia Macedo diz que é preciso ter muito cuidado para trabalhar o tema na educação básica. Responsável pela graduação pioneira no país, que está formando sua primeira turma, ela destaca a importância de capacitar os professores. Desde 2005, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da qual é pesquisadora, oferece cursos, como o de especialização em metodologia do ensino de gênero e diversidade.
— As aulas começam com uma dimensão político-social e, depois, do cotidiano escolar. Usam vídeos para mostrar que não há uma relação automática entre identidade anatômica e orientação heterossexual. É preciso romper com essa lógica, pois o corpo biológico não leva necessariamente a uma identidade de gênero. Problematizamos as múltiplas possibilidades de expressão e rompemos com a visão estereotipada de que se nasceu fêmea, vai ter identidade feminina e vai gostar de homem — ela explica.
Dos 12 formandos da primeira turma do bacharelado da UFBA, cinco estagiam na secretaria de Educação da Bahia, pioneira ao permitir que alunos travestis e transexuais usem seus nomes sociais nas escolas estaduais. A resolução foi aprovada no fim de 2013, e determina que os colégios desenvolvam projetos de combate à homofobia.
Márcia recomenda o uso de filmes como "Não gosto dos meninos", uma versão brasileira para "It gets better", feita a partir de depoimentos de quem se confrontou, em algum momento, com a orientação sexual. A produção livre está disponível no YouTube:
— A escola pode criar um espaço de discussão e reflexão para trabalhar a autoestima. É possível a realização de debates e sessões de filmes, como esse curta. Mas a escola sozinha não muda a cabeça de pessoas. É necessária a desconstrução de um conjunto de referências trazidas pela família, pela religião e pela mídia, que criminalizam e culpabilizam o sujeito.
Questionada se a orientação sexual de um professor pode influenciar alunos, sobretudo na infância, a especialista devolve a pergunta:
— Como as crianças se descobrem homossexuais em famílias héteros? Essa representação já é prática do preconceito de que, em contato com pessoas com orientação sexual "indesejada", haveria uma espécie de contaminação. Tenho uma filha de 9 anos, converso com ela sobre isso e me preparo para ela ser o que quiser.

Fonte: O Globo 

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